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Por Renata Fontanetto

Ao longo da pandemia, você deve ter recebido alguma mensagem pelo WhatsApp ou um vídeo no YouTube com uma notícia estranha sobre o novo coronavírus. Não é de hoje: a desinformação, quando pessoas têm a intenção de desinformar, circula na sociedade há muito tempo. Com as redes sociais, esse fenômeno se intensificou e ganhou patamares preocupantes, tornando difícil o controle em relação às doses homéricas de informação falsa ou equivocada que circula por aí. A pesquisadora Dayane Machado, doutoranda do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, bem como membro do Grupo de Estudos sobre Desinformação nas Redes Sociais (EDReS/Unicamp), vem estudando um tipo específico de desinformação, aquela relacionada às vacinas.

Ao conversar com o Museu da Vida, Dayane explica quais são as características que compõem uma campanha de desinformação. Em artigo recente para o Observatório da Imprensa, ela afirmou que é preciso muita ciência para combater esse tipo de conteúdo. Conhecer algumas estratégias utilizadas pelos produtores de conteúdo que desinformam pode ajudar a “imunizar” as pessoas, capacitando a população para uma luta que é individual e coletiva.

Museu da Vida: Desinformação, fake news, notícia falsa e outros termos significam a mesma coisa?

Dayane Machado: Não, existem algumas diferenças. Temos “misinformation” (informação incorreta), que é aquela informação equivocada que circula sem a intenção de enganar. “Disinformation” (desinformação) é a informação falsa produzida intencionalmente para causar danos. Como pesquisadores de desinformação, a gente mede intencionalidade a partir dos rastros financeiros que alguns atores deixam para trás. Por exemplo, quando a gente fala em campanhas antivacinação, conseguimos identificar quem são os principais atores e o que eles ganham com isso. Por último, temos o que chamamos de “mal-information” (má-informação), que é uma informação que é verdadeira, mas que não é feita para circular publicamente. Por exemplo, uma informação sobre uma pesquisa que ainda está em andamento, não pode ser publicada porque os resultados não foram concluídos, mas a informação é vazada por alguém e pode gerar um ruído. De forma técnica, pensando exclusivamente em “fake News” (notícia falsa, em português), a gente diz que são aquelas mensagens que tentam imitar uma notícia para emprestar a legitimidade do jornalismo.

O que caracteriza cada tipo de conteúdo relacionado a uma informação falsa ou incorreta? Esta tabela ajuda a entender! (Crédito: projeto First Draft. Figura disponível aqui.)

Museu da Vida: O que caracteriza o movimento da desinformação?

Dayane Machado: A gente costuma chamar esses casos mais claros de campanhas de desinformação. Por exemplo, as campanhas que têm como foco a destruição de reputações. Elas podem usar robôs ou pessoas que se comportam como robôs. O que seria isso? Para ilustrar, este ano, nós tivemos o lançamento de um documentário que fala da pandemia como se ela fosse uma grande conspiração, chamado “Plandemic”. Foi uma campanha de desinformação muito bem pensada. Os responsáveis subiram o documentário na internet dizendo: “Isso vai ser censurado porque é verdade. Então, a primeira coisa que você tem que fazer ao liberarmos é baixar o material. Assim que o documentário for derrubado, você sobe novamente o arquivo”. Houve gente de diversos lugares do mundo fazendo um esforço para que o material sempre se mantivesse no ar, em diferentes plataformas. Fica muito difícil monitorar essa campanha e esse comportamento robô. Quanto mais se derruba o material, mais as pessoas ficam curiosas e querem saber, então acaba atraindo muita curiosidade e foco para o documentário em si. No terreno da saúde alternativa, que é com o que trabalho nos últimos tempos, as campanhas nem sempre são tão claras como essa que eu acabei de mencionar. Há produtores de conteúdo da saúde alternativa que querem tirar a legitimidade das instituições, ocupando o lugar delas por meio da oferta de cursos, livros, e através da simulação de proximidade e de pertencimento em relação à audiência. Vemos ataques a instituições em geral. É um discurso que fica pingando devagarinho e que é contínuo, como as insinuações de que cientistas são corruptos, de que eles têm interesses e ligações com a indústria farmacêutica, bem como a utilização de termos como “indústria da doença” e “indústria do câncer”.

Museu da Vida: Podemos mencionar alguma outra estratégia que as pessoas precisam ficar atentas na hora de tentar perceber uma campanha de desinformação?

Dayane Machado: Normalmente, tudo o que vem para dar golpe e seduzir as pessoas vem num discurso muito simples, apelativo. É bem ao contrário de como a ciência funciona. Quando falamos de ciência, falamos com cuidado, explicando que numa determinada situação pode funcionar, mas em outras condições não. Não é o tipo de narrativa que é gostosa de ouvir. Já o boato diz aquilo que a gente gosta de ouvir, brinca com os nossos vieses. É algo na linha: “Não precisa ficar dentro de casa em isolamento, basta você comer casca de laranja para se prevenir contra o vírus”. Isso é muito sedutor porque sem querer sempre buscamos o atalho, o caminho mais fácil.

Jogo Crancky Uncle: Disponível em inglês para usuários do iPhone, este jogo dialoga sobre desinformação climática por meio de um personagem que utiliza estratégias de convencimento. O objetivo é identificar as estratégias, reagindo aos argumentos de maneira efetiva.

Museu da Vida: Há fatores em comum entre os movimentos antivacina, do terraplanismo e outros que refutam evidências científicas?

Dayane Machado: No geral, esses movimentos funcionam de forma parecida do ponto de vista da desconfiança em relação à ciência. Às vezes, essa desconfiança vai ficar na superfície, às vezes ela vai explodir e virar pensamento conspiratório. Depende muito do espectro que a pessoa ocupa na régua da desconfiança. O pesquisador Yurij Castelfranchi, da UFMG, quando comenta sobre os movimentos anticiência, diz que não existe de fato um movimento anticiência no Brasil. Quando a gente olha mais de perto, tanto o movimento antivacinação, o terraplanismo, os negacionistas das mudanças climáticas, ou seja, os grandes movimentos, vemos que existe uma certa admiração pela ciência. Eles não são anticiência, eles são contra algumas instituições, contra algumas teorias e contra alguns cientistas, mas eles gostam de ciência. Eles pregam o pensamento crítico, defendem a necessidade de evidências. A questão é que os participantes desses movimentos distorcem a realidade, e a percepção e o imaginário de ciência deles é diferente. Há essa ideia de que “precisamos ser independentes e pensar com a nossa própria cabeça”, sem depender de instituições. A rede social para essas pessoas é um espaço democrático, livre, onde elas dão conta de filtrar o que é real do que não é. Muita gente acredita, por exemplo, que buscadores como o Google são neutros. Há uma pesquisa que mostra que cidadãos que se identificam com ideias da extrema-direita nos Estados Unidos acreditam que os primeiros resultados que o Google devolve são os resultados verdadeiros por estarem acima dos outros. Produtores de conteúdo que desinformam sabem disso e usam a seu favor. Existe um pouco essa ideia, entre eles, de que quem acredita em teorias da conspiração acordou para a realidade, com o uso do termo “red pill” (pílula vermelha, em português), trazido do universo do filme Matrix. É algo como: "Eu tomei a pílula e agora eu consigo ver a realidade muito mais clara que você”, ligado a algo místico de libertação.

Museu da Vida: Você diria que o combate a essas campanhas de desinformação é multifatorial?

Dayane Machado: É, a gente precisa de muita gente envolvida para conseguir lidar com esse problema. No começo, se falava muito em agências de checagem, mas temos também outras frentes. Por exemplo, como se faz para regular as redes sociais e a internet? É difícil regular porque é difícil definir desinformação e, para defini-la, precisamos criar protocolos. Para fazer pesquisa, eu desenvolvi um protocolo para tentar identificar o que seria uma desinformação sobre vacina. Para desinformação sobre Covid, teríamos que ter um outro protocolo. Terraplanismo, desinformação climática, desinformação histórica... Um legislador não vai conseguir escrever um texto que dê conta de todas essas realidades, mas a necessidade de regular e de responsabilizar plataformas como Facebook e YouTube vem ficando cada vez mais clara. Temos outra questão que é a pressão social. Em 2020, muita gente se sentiu mal com o volume de desinformação nas redes. Há a necessidade de conscientização da população de que esse problema existe, de que temos que encarar todo esse material que recebemos com cuidado. A pressão social faz as empresas ficarem um pouco mais cuidadosas em relação ao combate à desinformação e ajuda a tirar o financiamento de quem produz esse tipo de conteúdo. Outro ponto importante é que os anunciantes também precisam se ver como responsáveis, observando se o dinheiro destinado à publicidade está fomentando esse tipo de material. Por último, temos o papel da imprensa, que continua sendo forte, e o papel dos cientistas e dos divulgadores científicos.

Que tal treinar no Bad News? Desenvolvido por pesquisadores que estudam a desinformação, este jogo disponível em inglês posiciona o jogador num lugar de alguém que quer enganar outras pessoas. Manipulação de emoções, produção de notícias falsas e construção de um império de desinformação são apenas alguns passos!

Museu da Vida: No início de novembro, você informou no Twitter a divulgação de um estudo, do seu grupo de pesquisa, na revista Science Magazine. Se você fosse fazer um vídeo no YouTube explicando para os seguidores do Museu da Vida alguns dos resultados deste estudo, como você construiria o roteiro desse vídeo?

Dayane Machado: Eu diria que a nossa pesquisa é uma espécie de Globo Repórter da desinformação sobre saúde, porque tentamos entender quem está por trás da desinformação a respeito de vacinas, por que estão fazendo isso e quais estratégias estão usando para continuar produzindo desinformação sem serem incomodados. Sem entrar na questão metodológica, o que tentamos fazer foi simular o comportamento de um usuário dentro do YouTube para saber o que essa pessoa poderia encontrar caso estivesse buscando por materiais sobre vacinas em português. Descobrimos algumas coisas, entre elas que boa parte da desinformação circulando hoje é antiga, já foi refutada há anos, mas continua sendo usada pra manipular a opinião pública. Outro resultado é que os produtores de conteúdo têm estratégias muito claras para não depender da plataforma do YouTube, seja do sistema de recomendação de vídeos ou da monetização do conteúdo.Gostaria de finalizar dizendo que, durante a pandemia, presenciamos uma circulação muito livre de desinformação alcançando pessoas que não costumavam ser o público desse tipo de material, e as pessoas, de certa forma, se acostumaram com a neurose. Vários estudos mostram que essa exposição excessiva a desinformações e teorias da conspiração pode influenciar a tomada de decisão das pessoas, e a gente tem visto o impacto desse problema neste último ano. Muita gente está confusa, sem saber em quem confiar ou como agir. Me pergunto como vamos fazer para recuperar a confiança desses grupos. Quando a gente faz a “imunização” e prepara as pessoas para a desinformação com antecedência, é mais efetivo do que chegar depois da enxurrada de conteúdo dizendo que tudo o que a pessoa leu, viu e ouviu não é verdade. O que dá esperança é saber que não estamos sozinhos, que tem um monte de pesquisadores, jornalistas, divulgadores de ciência e um público muito engajado ajudando a enfrentar essa crise.

 

Publicado em 18 de dezembro de 2020

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